sexta-feira, 18 de maio de 2012

Heroísmo técnico.

Ainda que o Sol brilhasse forte, um vento cortante fustigava meus cabelos enquanto minha moto dobrava esquinas e descia ruas. Meus olhos percorriam as placas, e eu já estava impaciente. O tal endereço parecia não chegar nunca!

Finalmente, avistei uma charmosa placa de madeira, que indicava o início da Alameda das Begônias. Árvores floridas enfeitavam as calçadas retilíneas, e até os paralelepípedos da rua tinham um aspecto de limpos e bem cuidados. As residências eram suntuosas e belas, mas pareciam me fitar com desdém e prepotência. Passei por uma praça cuidadosamente arquitetada, com canteiros de flores, um anjo-chafariz e um parquinho colorido, onde crianças rechonchudas e saudáveis eram paparicadas por babás meigas e bem-vestidas. Não pude deixar de analisar o quão contrastante aquilo era com a minha realidade. No meu bairro, raras eram as casas pintadas e escassos os muros não pixados. As crianças corriam catarrentas e sujas e a única vegetação era o mato por entre os buracos do calçamento.
Segui a Rua Girassol e virei à esquina desta com a Rua Gerânio, chegando enfim ao meu destino. Tirei o capacete e saí da moto. Um nº 55 dourado e maciço reluzia sobre o muro revestido de pedras acinzentadas. Através das grades do portão (também douradas, maciças e reluzentes), avistei um extenso e exótico jardim. Flores de todas as cores estavam meticulosamente organizadas em espirais e mandalas.
Após a minha identificação no interfone, o portão se abriu e eu entrei naquele pequeno universo perfeccionista. Segui o caminho circundado por pedrinhas brancas e tentei não me intimidar com a enorme casa no final deste. Embora rústica, mostrava indícios de alta tecnologia, o que me trazia a sensação de um pequeno castelo do século XXI.
A porta foi aberta, e fui surpreendido por quem só podia ser a princesa daquele reinado. Demorei alguns segundos para assimilar aquela composição, que embora padrão, era de uma beleza arrebatadora: o vestidinho cor-de-pêssego combinava com suas unhas e realçava a pele alva; o cabelo louro platinado caia em cascatas sobre seus ombros, e seus olhos verdes sorriam, juntamente com seus lábios rosados e cheios de gloss. Quando ela falou, a sua voz melodiosa percorreu meu corpo inteiro, dando-me um frio na barriga e contraindo as minhas entranhas. Meu cérebro foi invadido por aquelas palavras e só conseguia ecoar a frase da doce menina-mulher:

-Você pode me salvar?

É claro que eu poderia! Por ela, mataria qualquer dragão, enfrentaria qualquer feiticeira, desbravaria qualquer selva de espinhos!
Então, minha mente reassumiu o controle. Eu não era o herói plebeu e nem ela a princesa em perigo. Nossa relação se resumia em dois fatos: eu era o técnico da internet, e ela, uma patricinha urbanóide.



Hara Flaeschen, São-Lourenço, 17 de maio de 2012

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Chuva, bolhas e cappuccino


Era um dia frio. O verão tinha partido completamente, e o inverno, desrespeitando a presença do outono, já demonstrava seus primeiros indícios. Contrastando com a paisagem cinza e monótona, os pedestres iam e vinham pelas ruas, usando roupas coloridas e felpudas. Eu andava, sem rumo, apenas porque não queria ficar em casa. Sentei em um banco de praça e comecei a exercer meu passatempo favorito: observar as pessoas. Um casal adolescente passeava de mãos dadas, e eu quase pude ver a bolha que os isolava do resto do mundo. Senti uma pontinha de inveja... Há muito eu não me apaixonava! Ignorando os pensamentos desagradáveis, comecei a escrever mentalmente uma história para a jovem ruiva elegante e para o rapaz de olhos verdes, que usava óculos. Eles se casariam, ela seria professora de ballet e ele engenheiro químico. Teriam dois filhos...
Repentinamente, uma gota d’água gorda e gelada interrompe meus devaneios. Começara a chover. Os jovens enamorados, sem nem imaginarem que preencheram a mente de um estranho por alguns minutos, correram a fim de se protegerem da chuva, e eu tomei a mesma decisão. As pessoas de roupas coloridas abriam guarda-chuvas berrantes, em uma tentativa de quebrar a melancolia que caía do céu. Corri para dentro de um café e sentei em uma mesinha aconchegante.  Pedi à garçonete sorridente um cappuccino com chantilly e uma tortinha de chocolate, e percebi que ela me fitava com certo interesse. Eu já estava acostumado com o assédio feminino, embora não o compreendesse. O que as mulheres achavam de tão interessante em um brutamonte de 1,90 m com espessa barba e revoltos cabelos loiros?  Talvez elas gostassem da suavidade de meus olhos azuis, que se diferenciavam completamente de todo o resto.  Enquanto esperava o cappuccino, resolvi continuar a observar as pessoas, dessa vez mais detalhadamente. Um senhor rabugento, que escondia a volumosa barriga por trás de um suéter de lã, reclamava com a garçonete a demora de seu pedido, enquanto sua esposa passava um batom vermelho combinando com seus brincos exagerados (que, aliás, estavam horríveis com aquele blazer cáqui). Comecei a rir discretamente. Aqueles dois provavelmente não se aguentavam mais, mas não sabiam viver um sem o outro. Eles se completavam.
A porta do café se abriu, e uma rajada de vento gelado entrou.  Uma confusão de aromas invadiu o recinto: uma mistura agradável de perfume feminino, cremes e alguma coisa que lembrava um banho de banheira. Distraidamente levantei os olhos para ver quem era a causadora daquele delicioso caos olfativo. Uma jovem mulher, de cabelos escuros e pele cor-de-jambo, fechava seu guarda- chuva florido. Rapidamente, meus olhos analisaram o bom gosto de suas botas verde-escuro e de seu sobretudo vermelho, acompanhado de um cachecol arco-íris. Foi então que seus olhos pescaram meu olhar. E quando eu digo “pescaram”, é porque não consegui desviar meus olhos azuis daqueles intensos olhos achocolatados.
Aquela desconhecida, que era simultaneamente uma explosão de beleza, cores e aromas, em segundos me fez querer estar na bolha dos adolescentes apaixonados e no companheirismo dos velhinhos engraçados. Senti que ela poderia despertar em mim o que quisesse. Poderia ser minha desgraça e minha salvação. Então ela sorriu, e até o tempo parou para olhar imagem tão bela. Ainda sorrindo, caminhou em minha direção e sentou-se em minha mesa. Ela optara por me salvar.

22 de Abril de 2012, Solar dos Lagos, São Lourenço, MG – Hara Flaeschen 

domingo, 18 de março de 2012

Cores


Aparentemente não tinha nada de extraordinário, não parecia merecer destaque, não parecia ser diferente e nem parecia ser importante pra que alguém contasse sua história.
Era um menino normal. Gostava de catar minhocas e de soltar pipa. Não gostava de matemática, nem de jiló e nem de coisas azedas. Às vezes faltava aula e ficava jogando futebol na rua. Gostava muito de maria mole e mais ainda da Maria, meninasinha risonha, filha do padeiro.
Mas tinha uma mania engraçada, mania que era mais do que gostar e era melhor do que todas as coisas. Era melhor do que limonada, melhor do que maria mole e a Maria juntas. Era uma mania danada de observar. Observava as pessoas, as paisagens, as minhocas e o moço que passava à tardinha com aquela máquina de fazer pipoca. Mas não eram bem as pessoas, não eram bem as paisagens, não eram bem as minhocas ou as pipocas. Eram as cores. Ele observava as cores. Todas elas. E é bem aí que a gente tem vontade de contar sua história. Tem vontade de falar dele. Porque ele tinha olhinhos de pintor. Se sentia eufórico a cada tonalidade, a cada nova cor. Não observava e nem achava bonito apenas o começo ou o fim do dia quando as cores se fundem em milhares de tonalidades inebriantes. Gostava de observar o branco da pipoca sendo coberto pelo amarelo amarronzado do caldo de cana, e o branco de farinha na cara da Maria que era toda pretinha. Adorava quando a noite ia chegando e o céu ficava quase lilás com uma estrela brilhando sozinha entre as nuvens. Se deliciava quando chegava seu aniversário e a mãe preparava pra ele um bolo de fubá amarelinho coberto de coco branco e colocava bem no meio uma flor rosada do quintal. Às vezes, e torcia para que sua mãe jamais soubesse, cobria a mão de barro e prensava com força na parede branquinha do fundo de casa. E ficava observando o marrom e o branco... e o verde da grama, e o preto do gato, e o azul do céu e o cinza do muro com o violeta da flor.
Estava convencido de que existia um pintor muito caprichoso que combinava todas aquelas cores, e jamais errava nos tons, jamais misturava cores descombinantes. E punha tudo alí, só pra gente olhar e achar bonito.
Um dia o menino dos olhinhos de pintor conheceu um moço muito curioso. Era um moço que não via cores. Contou pro menino que tinha experimentado alguns jilós e coisas azedas pela vida e que agora tudo era cinzento.
O menino foi embora cabisbaixo. Esperou a noite chegar e deitou. Mas não dormiu. Ficou pensando no homem que não via cores. Decidiu que aquilo estava muito errado e resolveu mostrar ao homem algumas coisas.
Mostrou-lhe a pipoca e o melado. Mostrou-lhe o amanhecer, o anoitecer e o entardecer. Mostrou-lhe as flores e o muro e o gato e o bolo de fubá. Foi chamando a atenção do homem a cada nova tonalidade. Por último mostrou-lhe o mais bonito. A Maria. Brincava sentada no chão do lado do padeiro. Toda pretinha com a cara suja de branco, e ao lado, como que por obra do pintor misterioso, uma maçã, uma maçã bem vermelha.
O menino sentou o homem, e falou pra ele, bem baixinho, de pé de ouvido. Falou sobre o pintor. Contou que ele era muito cuidadoso e que pintava tudo aquilo pra que a gente visse, pra que a gente gostasse, pra que a gente se sentisse feliz. Falou num tom muito sério e depois saiu correndo.
O homem foi embora, pensando que aquele menino era doido, pensando em todas as asneiras que ele tinha dito e reparando como estavam amarelos os girassóis naquela primavera.

quinta-feira, 1 de março de 2012

À Clarisse Lispector

Então, como estou totalmente ausente, achei um post de minha autoria, antigo, em outro blog, e resolvi postar aqui, só pra falar que eu ainda faço parte dessa nata literária que é o De boa na ADG! :)



CDF como sou, peguei a obra mais marcante de Machado de Assis (Obviamente, me refiro a Dom Casmurro) para dar uma lidinha básica ;x Eis que tive uma surpresa: Embora no princípio eu estivesse lendo só por motivo de força maior (leia-se: vestibular) eu acabei gostando. Na real, não foi tanta surpresa assim, já que bons leitores geralmente apreciam grandes obras. O fato é que após seu primeiro beijo com Capitu, Bentinho fica refletindo sobre, e acabou me fazendo refletir também: “Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas”. É exatamente assim que a saudade se faz presente. Repassamos a mesma cena, as mesmas palavras, os mesmos sorrisos e até mesmo algumas lágrimas milhões e milhões de vezes. A questão é: Até onde isto é saudável? Até onde devemos passar e repassar cenas anteriormente vivenciadas?

As lembranças muitas vezes são o “convívio social” do solitário ou de quem se faz solitário temporariamente. E em pensamentos solidários (Não, eu não troquei o t pelo d. Eu realmente quis dizer solidário ;p) acabo achando que ao menos temos boas lembranças do que passou. Ao menos isso. E aí passamos de solitários para auto-solidários (manda a nova ortografia se foder u.u), tentando justificar a nossa solidão e nossa necessidade de lembrar do que já não existe. Mas se refletirmos só um pouquinho sobre, veremos que essa auto-solidarização é mórbida! Essa necessidade de fechar os olhos e voltar no tempo, algo que nunca será possível, algo que jamais se concretizará..isso é doentio!
Com tais pensamentos, concluo: Saudade é diferente de masoquismo. Saudade te faz sorrir, te impulsiona para um futuro possivelmente melhor que o passado (por mais excepcional que este tenha sido). Masoquismo é moer e remoer, deixar toda sua vida se extinguir, se apegando apenas aquele fiozinho de felicidade. É deixar tudo de lado, sem querer ver o que o futuro trará. Eu confesso que muitas vezes passo por esse ciclo. Solidão, solidariedade...mas no fim eu sempre me obrigo a sorrir.
Eu sempre penso em como “Carpe Diem” faz sentido(Cá estou eu novamente fazendo alusão aos nossos recursos literários)! Mas quantas pessoas levam a tão famosa frase a sério? Quantas pessoas acordam pensando que são felizes somente por que acordam?
Você faz isso? Eu faço isso? Não sei. Mas deveríamos fazer.


P.S: Pra quem não entendeu o título, eu me referia à característica mais marcante de Clarisse Lispector: Fluxo de Pensamentos! J